Direito de Imagem e “Irmã Zuleide”

Flavia Penido/ janeiro 30, 2013/ direito de imagem, direito digital, Notícias

1. O caso fático

A notícia de que um ator de paródias que se intitula “Irmã  Zuleide” foi preso como consequência por uso indevido de imagem (responderá pelos crimes de constrangimento, injúria e difamação) repercutiu como uma bomba na internet.

Não se trata aqui de direitos autorais sobre a imagem: trata-se de direito da própria imagem da pessoa,  direito este personalíssimo, intrínseco ao próprio indivíduo, e que possui diversas cláusulas pétreas da Constituição Federal a defendê-lo.

Neste direito à imagem, é bom deixar claro, não estamos falando apenas do retrato em si: estamos falando de tudo que representa ou assinala o indivíduo: a sua voz, o seu molde, a sua personalidade. Sim, personalidade – e no caso em tela, em razão do perfil irônico que faz troça de alguns religiosos, este ponto é muito relevante.

José Carlos da Costa Neto nos ensina:

“ Essa linha de pensamento – de ampliação da abragência da imagem – evidenciou-se, também, no irretocável voto vencedor do Desembargador FERNANDO WHITAKER, relator do acórdão DE 05.12.1995, proferido na apelação cível 3.693/75, por maioria de votos da Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que, ao fundamentar a decisão, preleciona que a imagem ‘ não tem sentido meramente físico, abrangendo, igualmente, o perfil subjetivo e psicológico’ “. (in Direito Autoral no Brasil, pág 35 – grifos nossos).


Então que se esclareça: o “caso da Irmã Zuleide” trata de direito personalíssimo, protegido pela Constituição Federal.

O colega a representar o réu, Emerson Damasceno, veiculou um texto no qual defende algumas teses, teses essas com as quais não há outra opção senão discordar. Nada melhor do que um bom debate para animar o tema dos direitos de imagem na internet não é mesmo?

2. Direito de Imagem e perfis falsos

 

A tese de que há um perfil “fake” da Presidente Dilma no Twitter sem que esta tenha se pronunciado ou tentado impedir o perfil de continuar suas postagens, com todo o respeito, não se presta ao caso aqui examinado.

Isto porque à uma, o fato de alguém não exercer seus direitos não impede que outrem o faça;  à duas, porque o perfil @dilmabolada, como já visto,  está de acordo com o ordenamento jurídico vigente.

Sim! A Lei de Direitos Autorais é clara ao afirmar que:

 

Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito

Ora, qualquer pessoa que vá à home do perfil da Dilma Bolada (divertidíssimo por sinal) ou ao respectivo perfil no Facebook  verá que há uma anúncio evidenciando ser o perfil  uma sátira. O perfil é de humor, e seus autores tratam a Presidente como qualquer humorista de bom gosto trata os políticos de qualquer país.

Além disso, a Presidente Dilma é figura notória, conhecida por todos os brasileiros – e a jurisprudência (decisões reiteradas de nossos tribunais que dão um caminho, uma orientação aos julgamentos futuros)  é cristalina ao estabelecer que quanto mais conhecida uma pessoa, menor seu direito à privacidade e intimidade.

Em texto remetendo a estudo do STJ (Superior Tribunal de Justiça), publicada na revista eletrônica Consultor Jurídico explica:


“ O conflito entre liberdade de informação e direitos da personalidade também se apresenta com regularidade em processos julgados pelo STJ cujas partes são pessoas com notoriedade, como artistas, políticos, empresários. A jurisprudência brasileira reconhece que essas pessoas têm proteção mais flexível dos direitos relativos à sua personalidade, como a imagem e a honra”.

Desta forma, não há como comparar os perfis de sátira de pessoas notórias com o caso em exame, onde a pessoa lesada é uma professora sem notoriedade.


3. Legislação Constitucional e Infra-Constitucional sobre Direitos de Imagem

Resta a análise dos danos sofridos pela autora da ação pelo uso indevido da imagem. Ora, a questão tem seus fundamentos na Constituição Federal, no Código Civil e na Lei de Direitos Autorais. Não se trata aqui (antes que venham invocar a livre circulação de idéias, bens e conhecimento que a internet teria trazido) de uma batalha entre leis de direito de imagem que restringem em os usos e costumes da internet que alguns insistem em invocar; sequer estamos falando de direitos autorais: estamos falando de princípios constitucionais, cláusulas pétreas de nossa Carta Magna e de direitos intrínsecos à personalidade de um indivíduo.


Que princípios são esses? Diz a Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

 

 

Está bem claro: a Constituição Federal protege o direito à imagem dos brasileiros e dos estrangeiros residentes no país (lembrando que esse direito à imagem e à privacidade é maior ou menor a depender da notoriedade da pessoa).


O Código Civil também protege o direito à imagem:


Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

 

Aqui também não há dúvidas quanto ao texto legal; ele é claríssimo. Não há como, pois, defender que Irmã Zuleide poderia utilizar-se da imagem de outrem somente pelo fato de ser artista, de uma vez que nem a Constituição ou o Código Civil fazem qualquer exceção à regra; a única exceção existente no nosso ordenamento jurídico, como já dito, é o art. 47 da Lei 9610/98 (Lei de Direitos Autorais).


Elcio Rezende ressalta:

 

A proteção da imagem é conquista do direito moderno, conseqüência natural do progresso técnico. O direito assegura ao indivíduo o direito à própria imagem. A lei proíbe a sua divulgação por qualquer meio – fotografia, cinema, gravação no vídeo – e reprime a infração como atentado à privacidade, de qual cada um é o senhor exclusivo… A divulgação da imagem, não autorizada, sujeita o exibidor à reparação, seja material, seja moral o dano. Além desta conseqüência, pode acarretar a apreensão do material exibido, e sujeitar o exibidor aos efeitos penais.”

Extremamente comum há anos, a discussão (e condenações civis) pelo uso indevido de imagem, mormente quando o seu titular não autorizou ou quando tal ato expôs o ser humano ao ridículo, como podemos constatar em inúmeros julgados do Supremo Tribunal Federal que como corte constitucional, a partir dos incisos V, X e XXVIII do artigo 5º. da Carta Magna, apreciou a questão jurídica […] (in A Súmula 403 do Superior Tribunal de Justiça e o uso indevido da imagem das pessoas naturais no ambiente virtual” – g.n).

A questão é tão pacífica que o autor desse texto menciona:

Não se pretende aqui fazer digressões demonstrando a ilicitude de expor alguém ao ridículo constrangendo-lhe perante a sociedade e causando-lhe dor moral, nem tampouco, demonstrar que eventualmente a exposição da imagem de forma indevida pode causar dano patrimonial ao lesado, afinal, esta matéria já foi demasiadamente estudada e tratada pela doutrina e jurisprudência pátrias como acima demonstrado.

[…]

Corroborando tudo que foi explanado até o momento e, indo além, ao dispensar o titular da imagem o ônus de provar prejuízo diante do uso indevido da imagem o Superior Tribunal de Justiça em outubro de 2009 editou a súmula 403 com os seguintes dizeres:


“Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada da imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais”.

Diante do enunciado da novel súmula, vale afirmar que segundo o entendimento do STJ, bastará ao Autor da ação de indenização comprovar perante o Poder Judiciário que ocorreu a exposição de sua imagem sem autorização por alguma empresa que, por presunção relativa, existirá dano e, consequentemente, a procedência do pleito indenizatório.

Nossa questão surge quando a ilicitude ocorre no ambiente virtual, isto é, na internet e suas conseqüências jurídicas ((in op cit – gn.).


Como ressaltado acima, o STJ proferiu Súmula (de número 403) afirmando que a violação ao direito de imagem é algo tão sério e cristalino que sequer há necessidade de se provar o prejuízo causado; basta que tenha ocorrido a utilização indevida da imagem. No caso da Irmã Zuleide, nem haveria necessidade de comprovação de todos os dissabores que a utilização de sua imagem no perfil do réu causou à autora; bastaria a prova de que a autora é a pessoa da foto. Inobstante, são inquestionáveis os fatos de que o réu auferia lucro através da sua personagem, além de, segundo consta, haver prova dos dissabores pelos quais a autora teria passado por conta da utilização da foto no perfil. Há portanto, embasamento sólido para pleitear-se indenização por danos patrimoniais e morais, independente do processo criminal ora em curso.


4. Do conflito entre liberdade de expressão e à proteção ao direito de imagem

Outro argumento é o da liberdade expressão. Sim, a liberdade de expressão também é uma cláusula pétrea de nossa Constituição. Mas em nenhum momento nossa Carta Magna afirma ser tal liberdade de expressão ilimitada; ela possui limites, muito bem estabelecidos por sinal.


Dispõe a Constituição Federal:

 

“Art. 5º. (…)

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

(…)

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral, ou à imagem;

(…)

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica ou de comunicação, independentemente de censura ou licença;

(…)

XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;”


E o artigo 220 da Carta diz:

 

“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”


Ora, não há como analisar-se a Constituição Federal lendo os seus artigos isoladamente, pois esta é um corpo uno, o qual deve ser interpretado de forma que seus artigos estejam em consonância uns com os outros e não haja contradições entre eles (há evidentemente outros modos de interpretação, efeitos, considerações a ser feitas, mas este não é objeto deste texto).


Assim, se:


a) o artigo 5º diz que a liberdade de expressão é livre, assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral ou à imagem;

b) o mesmo artigo 5º, em seu inciso X  preserva o direito à imagem, afirmando ser este inviolável, assegurada a indenização por dano moral ou patrimonial quando houver violação;

c) o artigo 220 da mesma Constituição dispõe que não haverá limitação à liberdade de expressão, observado o disposto nesta Constituição;


É evidente que tais artigos devem ser lidos e interpretados em harmonia, e não há outra interpretação possível senão a de que é livre e ilimitada a liberdade de expressão, exceto as limitações impostas pela PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, a qual tem poder para isso!

Sobre o tema, vale ler o texto  “Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa”, de Luis Roberto Barroso, do qual destaco o seguinte trecho:

Independentemente da tese que se acaba de registrar, é evidente que tanto a liberdade de informação, como a de expressão, e bem assim a liberdade de imprensa, não são direitos absolutos, encontrando limites na própria Constituição. É possível lembrar dos próprios direitos da personalidade já referidos, como a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem (arts. 5º, X e 220, § 1º), a segurança da sociedade e do Estado (art. 5º, XIII), a proteção da infância e da adolescência (art. 21, XVI62); no caso específico de rádio, televisão e outros meios eletrônicos de comunicação social, o art. 221 traz uma lista de princípios que devem orientar sua programação” (in op cit – g.n.).   

Cai por terra portanto, o argumento de que, no caso em estudo,  a liberdade de expressão permitiria o uso da imagem .


5. Conclusão

Ante ao acima exposto, com todo o respeito pelas opiniões contrárias, não há como defender que o profissional que utiliza o apelido de “Irmã Zuleide” nas redes sociais tivesse o amparo do princípio da livre manifestação das idéias ao utulizar-se indevidamente de imagem retirada da internet.

Não há que se falar que a “internet mudou tudo isso”; não mudou. O fato de termos outros meios de comunicação e de trasmissão de conhecimento não muda o fato de que uma pessoa sujeito de direitos e deveres foi prejudicada nos termos da legislação em vigor; não muda os fatos que teve danos na sua vida, no seu dia a dia, que foi achincalhada, que teve direitos assegurados na Constituição Federal profundamente violados. Seria o mesmo que dizer que calúnia ou difamação deixam de ser crimes somente porque a pessoa ao invés de perpetrá-los numa reunião o fez em uma conference call. Não há como sustentar esse tipo de argumentação, com todo o respeito das opiniões dissonantes.

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